quinta-feira, 21 de junho de 2012

Espetacularização do real

por Sara Martins


No palco, panos de cor bege cobrindo o chão, uma mesinha no canto, abajures e poltronas vermelhas, em uma das poltronas um homem de roupa social lê um exemplar de um jornal. Uma imagem muito cotidiana que flerta com o realismo, aquele cenário poderia ser a sala de estar da casa de um conhecido ou do próprio espectador. O som transmite a narrativa das notícias presentes no jornal: tragédias e assassinatos cruéis e inusitados.

Essa é a abertura da cena Firmes Destilados, que conta com direção de Laura Bastos e atuação de Gisele Milagres, Maíra Cesarino e Marcelo Cordeiro. O realismo é quebrado com o diálogo do casal da alta sociedade que se dá em uma língua inventada, um gromelô. O conteúdo do diálogo é percebido pelas expressões, gestos e entonação que acompanham a fala. Em um dia comum, motivado pelas notícias jornalísticas, que mostram a banalização de crimes na sociedade, o casal decide ‘entrar na moda’, virar notícia, fazer o mesmo que os outros.

Essa trama leva a reflexões acerca da banalização da violência, o sensacionalismo midiático e como isso atrai o público, aguça a curiosidade, aumenta a audiência televisiva ou as vendas de jornais. Além de escancarar a falta de individualidade e de senso crítico dos personagens, que retratam a sociedade e repetem os atos veiculados nos jornais sem ponderação prévia.

Tais reflexões poderiam ser mais intensas se houvessem na cena pausas ou momentos de distanciamento, pressionando o espectador a comparar a sua realidade com a cena vista. Para entrar em voga, o casal da alta sociedade dá vazão aos sentimentos mais sórdidos e ocultos, o desejo por morte e sangue. Mata um por um os animais de estimação e se deparam com a entrada da empregada. Personagem responsável pela comicidade da cena, a empregada conversa em uma língua diferente do casal, um português carregado de sotaque e de erros gramaticais. Isso evidencia a diferença de classes que também está presente no figurino da serviçal e na maneira como ela é tratada pelos seus patrões, que planejam matá-la como fizeram com os animais.

Novamente um distanciamento seria bem vindo para evidenciar a questão: como tratamos nossos serviçais, as pessoas que ocupam cargos subalternos ou pertencem a classes economicamente inferiores? Certamente não articulamos para que morram, mas o desprezo está na maneira de olhar e de cumprimentar ou na falta de ambos.

Depois de matar um peixe, um gato e um cachorro, o casal tira a vida da empregada. Para o temor dos dois a serviçal volta, com a roupa manchada de sangue, sem se dar conta do ocorrido. Esse ciclo se repete mais duas vezes, trazendo consigo ora os animais, ora carne crua de membros humanos, que afirma ter comprado no açougue. Esse momento final da cena se relaciona com o teatro do absurdo, leva o público às gargalhadas, critica o absurdo dos produtos midiáticos que aumentam, inventam em cima dos fatos, e espetacularizam o real. A cena termina em seu ápice, no limite em que o absurdo, grotesco e a falta de sentido são engraçados e provocadores sem agredir o público ou tornar a cena ridícula.

Firmes Destilados é uma peça leve, de fácil entendimento, que levanta questões dirigidas mais a sociedade como um todo do que a cada espectador em particular. Uma comédia que relaxa com uma pitada reflexiva, não caindo na futilidade.

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